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Três Guinéus: feminismo, pacifismo e experimentação

Por Heci Regina Candiani



Junho de 1938. A Europa vivia um momento histórico de tensões e conflitos políticos: forças civis e militares se enfrentavam na Espanha, a Áustria fora anexada pela Alemanha, a aliança entre nazistas e fascistas avançava e a Segunda Guerra Mundial era uma possibilidade cada vez mais próxima. Foi nessa conjuntura que Virginia Woolf (1882-1941) levou a público um de seus ensaios mais marcadamente políticos, Three Guineas.

O primeiro desafio apresentado por esse ensaio é a compreensão de seu lugar no conjunto da obra de Virginia Woolf: Three Guineas começou a ser gestado em 1931, quando a autora concluía seu livro The Waves (As ondas, nas edições brasileiras). A intenção inicial da escritora com a nova obra era fazer dele a continuação de um de seus livros de não ficção mais populares, A Room of One’s Own (que tem diversas traduções brasileiras com os títulos Um teto todo seu e Um quarto só seu), publicado em 1929 e que discorre sobre a relação entre as mulheres e a ficção.

Woolf queria inicialmente dar sequência a essa obra, mas decidiu experimentar algo novo, um ensaio-romance que alternaria capítulos de ficção e não ficção discutindo as relações familiares e a condição das mulheres. Esse experimento, entretanto, não pareceu funcionar e Virginia Woolf decidiu desmembrar essa obra híbrida em dois textos autônomos: o romance The Years, de 1937, e Three Guineas, do ano seguinte.

Embora essencialmente não ficcional, Three Guineas preserva ligações com a ficção. O ensaio assume a forma de uma carta, redigida por uma escritora britânica (em algumas interpretações, fictícia, em outras, a própria Virginia Woolf) a uma correspondência que recebera de um renomado advogado inglês, este sim, um personagem ficcional. O remetente faz uma pergunta — como, na opinião da autora, seria possível evitar a guerra? — e solicita uma doação financeira para a organização pacifista que criara.

Em tom quase sarcástico, a escritora inicia sua resposta observando a raridade de uma carta na qual um homem instruído pede a opinião de uma mulher sobre um tema tão relevante quanto a guerra. Um tema desses e uma ocasião tão rara exigem seriedade na resposta e esse é mote para uma carta-ensaio que irá se estender por mais de 200 páginas e três partes nas quais a missivista apresenta ponderadamente sua convicção de que evitar a guerra é um processo que envolveria uma mudança social profunda, com o predomínio de outros valores. Para essa transformação, seria preciso ampliar o acesso das mulheres à educação e às carreiras profissionais, além de remunerar o trabalho que elas realizam na esfera doméstica. Nessa sociedade transformada, seria possível suplantar o espírito bélico dos governos e os projetos fascistas de sociedade e, assim, evitar guerras.

Utilizando-se com frequência da ironia, especialmente quando contrapõe a forma de vida e os valores das mulheres àqueles dos homens, a autora agrega à argumentação trechos de respostas fictícias a outras cartas e utiliza como ilustração de seus argumentos diálogos imaginários entre personagens ficcionais ao mesmo tempo que recorre a fatos e episódios históricos encontrados em biografias de figuras proeminentes da sociedade britânica e nos jornais. Em cada uma das três partes do ensaio, essa dinâmica entre ficção e não ficção adquire contornos específicos. Mas todas elas são concluídas com uma decisão da autora: doar a alguma causa social que, em sua opinião, pode um dia vir a evitar guerras, um guinéu (termo que originalmente designava a moeda de ouro britânica extinta em 1813, mas cujo uso se prolongou no idioma inglês como sinônimo da quantia de 21 xelins, pouco mais de uma libra).

Tensionando ao máximo as relações entre a conjuntura política da época e a condição das mulheres no sistema patriarcal, Woolf faz de seu texto um debate sobre as contradições do sistema democrático britânico nos anos 1930 que, em sua visão, guardava semelhanças fortes com as ditaduras europeias. Essas semelhanças e as desigualdades sociais entre os homens e mulheres são analisadas por Woolf exclusivamente do ponto de vista de sua classe social. Tanto que a autora fala das jovens burguesas como “filhas de homens instruídos” por considerar que as mulheres não podem propriamente ser classificadas como integrantes da classe mais abastada, uma vez que não dispõem de meios próprios de sobrevivência, dependendo financeiramente dos pais, irmãos ou maridos. Enquanto a situação dessas mulheres não mudar, enquanto elas não puderem contribuir com a sociedade com seus valores e seu potencial de trabalho, as contradições que permitem que países democráticos levem a cabo conflitos como as guerras coloniais e expansionistas ou embates como o da Guerra Civil Espanhola não poderão ser evitados.

As críticas da época consideraram Three Guineas uma espécie de manifesto feminista. A argumentação intrincada apresentada no texto, a correlação estabelecida entre fascismo e sistema patriarcal, a defesa dos direitos das mulheres, claramente entendidos como secundários pela sociedade inglesa da época, preocupada com a eclosão da guerra, renderam a essa carta-ensaio um lugar de pouco valor no conjunto da produção literária de Virginia Woolf até muito recentemente.

Isso talvez explique, em parte, por que, sendo Virginia Woolf uma autora relativamente popular no Brasil e com suas obras em domínio público, Three Guineas tenha demorado mais de oitenta anos para ser publicado no País. Por outro lado, a primeira edição brasileira de Three Guineas parece ter chegado em um momento apropriado, já que em nenhum momento anterior, o mercado editorial brasileiro esteve tão atento à demanda por textos feministas, que cresce com o fortalecimento dos debates feministas no país. Com o título de Três Guinéus, a obra foi editada pela Autêntica em outubro de 2019 em tradução de Tomaz Tadeu.

Desde a entrada das obras de Virginia Woolf  em domínio público, em 2012, a editora e o tradutor têm se dedicado à edição de obras da autora em português: foram publicados os romances Orlando, Mrs. Dalloway, Ao Farol e O quarto de Jacob e Flush, além de três coletâneas de ensaios, O sol e o peixe, A arte da brevidade e As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra.

Contar com um tradutor que estabeleceu uma relação tão longa e, ao mesmo variada, com a obra da autora é importante para o prazer da leitura de Três Guinéus hoje, em português. Em primeiro lugar porque a tradução do texto é claramente um projeto de tradução que não visa traduzir apenas um texto, mas a obra da autora e, com isso, aproximá-la do público leitor brasileiro. O tradutor contribui diretamente para isso com a pesquisa para as notas que facilitam o acesso a uma série de informações que poderiam ser obscuras em uma leitura que se faz mais de oitenta anos depois da escrita do texto. Esse recurso torna a experiência de leitura mais direta.

Three Guineas articula muitos aspectos temáticos e estilísticos presentes em maior ou menor grau em toda a produção literária de Virginia Woolf: o feminismo, o pacifismo, as experiências estilísticas e o recurso à ironia. É especialmente nesse último aspecto que a familiaridade do tradutor com diversas obras da autora, de gêneros diferentes, se evidencia como um ganho. As tiradas irônicas da autora não são simples piadas ou frases carregadas da intenção de provocar um riso, mais do que isso, na maioria das vezes a intenção da autora parece ser insinuar uma crítica social a aspectos caricatos da sociabilidade masculina, à representação social das mulheres ou mesmo a aspectos contraditórios da política que classificam alguns governos como democracias e outros como ditaduras. Mais do que o riso, esses momentos irônicos parecem querer provocar uma reflexão e comunicar uma inteligência subjacente ao texto que, se perdidas, poderiam tornar a leitura de Três Guinéus poderia se tornar cansativa, o que não acontece.


Virginia Woolf: Três Guinéus.Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019; 264 p.


Heci Regina Candiani é tradutora e pesquisadora. Entre suas traduções estão obras de Angela Davis, Ursula K. Le Guin, Octavia E. Butler e Silvia Federici. É doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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